«Os manifestantes agitavam bandeiras negras, símbolos da fome, e gritavam "gatuno!", "ladrão!".
Mário Soares não ficou parado a ouvi-lo.
No dia 30 de Novembro de 1983,
quando ouviu esses insultos contra a austeridade imposta pelo programa
do FMI, o primeiro-ministro e líder do Bloco Central (coligação PS-PSD)
visitava Coimbra acompanhado do ministro socialista Almeida Santos.
Semanas antes, o governo anunciara um imposto extraordinário de 2,6%
sobre os rendimentos dos portugueses (em 2013, a sobretaxa será de
3,5%). Soares aproximou-se dos manifestantes comunistas que o perseguiam
com as bandeiras pretas e agiu.
"Passei muito perto deles, aí a uma distância de um metro do local onde se encontravam, a vociferar", contou Soares no segundo livro de entrevistas biográficas à jornalista Maria João Avillez. "Ao
lado estava um polícia muito aprumado na sua farda, impassível.
Interroguei-o: 'Senhor guarda, o que está aqui a fazer? Não ouve estes
insultos? O polícia ficou atrapalhado, mas agarrou no homem cujos
insultos eram mais vernáculos e audíveis e prendeu-o."
Na sequência da ordem do
primeiro-ministro, três homens e uma mulher foram detidos e presentes a
tribunal. (...)
Segundo Mário Soares, as bandeiras negras da fome eram
uma construção do PCP.
"Havia uma equipa de cerca de 200
manifestantes - sempre os mesmos - que andava de um lado para o outro,
com bandeiras pretas, para me consultar e insultar. Eram profissionais."
No tribunal de Coimbra, o juiz Herculano Namora absolveu os
manifestantes. Para os julgar, segundo o Código Penal, era preciso uma
queixa (inexistente) do ofendido. Indignado, o primeiro-ministro reagiu
assim à decisão judicial, de acordo com o Correio da Manhã da época:
"Se
o juiz entendeu que não foi um crime público, o problema é dele.
Ficamos a saber que esse juiz não se importa que lhe chamem gatuno."
Revoltado com o comentário do chefe do
governo sobre a sua decisão judicial, o juiz apresentou queixa no
Conselho Superior da Magistratura:
"Parece-me que o dr. Mário Soares
se precipitou ao comentar a decisão de um órgão de soberania, pondo em
causa a independência dos tribunais e da própria magistratura."
Mário Soares não hesitou: se a lei não
servia, mudava-se a lei. Na semana seguinte, o Conselho de Ministros
alterava o Código Penal, explicando em comunicado que se tornavam
públicos, sem depender de queixa, "crimes de difamação, injúria e outras
ofensas contra órgãos de soberania e respectivos membros." Se
repetissem a graça, aqueles comunistas não seriam absolvidos.
Há uma semana, quase 30 anos depois de
liderar o governo de maior austeridade antes do de Pedro Passos Coelho,
Mário Soares escreveu no Diário de Notícias:
Soares também encabeçou uma carta aberta de 70 personalidades a pedir para Passos Coelho se demitir.
Mas quando liderou o Bloco Central
coligado com Carlos da Mota Pinto, do PSD, o primeiro-ministro
socialista também correu riscos e não era uma figura que agisse de
acordo com as regras de comunicação política hoje consideradas normais.
No dia 1 de Novembro de 1983, à porta da fábrica da Renault, em Setúbal, cercada por trabalhadores, Soares gritou-lhes:
"Diálogo convosco, só com a polícia!"
Segundo a agência noticiosa Anop, o primeiro-ministro justificou-se assim:
"Não pode haver tolerância nem diálogo com pessoas que nos dirigem slogans injuriosos."
São Bento emitiria um comunicado a dizer que "o díálogo tem regras e
perante as injúrias a resposta só pode vir das autoridades policiais".»
Excertos de um extenso artigo de
Sara Capelo e Vítor Matos, intitulado "As cargas policiais de Soares",
publicado hoje na revista Sábado.
por Pedro Correia in Forte Apache