terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Sobre esta história do Pitbull que matou uma criança

O José de Sá escreveu:
Sobre a história do Pitbull que matou uma criança, e da compaixão que o cão suscita, ao contrário da criança, vou partilhar uma pequena reflexão antiga: 

ALIENAÇÃO. 

E o problema é similar ao das touradas. Para quem veja o National Geographic, algo que impressiona é o olhar da leoa para a impala: totalmente desprovida de empatia. Aliás, é também como ela nos olha, e até as suas crias, no que se distinguem de imediato de um gato doméstico, por exemplo. O olhar da leoa é desalienado. Ela vê o que a impala realmente é: carne comestível!

Do mesmo modo, o povo que vê a tourada tem o olhar desalienado e lúcido: aquilo não passa de uma centenas de quilos de bifes! É para isso que os cria nos prados - para os esmifrar da carne, do leite, da força de tracção. Não é para os acarinhar projectando neles uma humanidade que os touros não têm.

Quando assiste a uma tourada, um apreciador não vê um animal que sofre. Vê um perigo de morte (para o toureiro, que esse sim, é humano), que a inteligência e a coragem dos homens domina. Quando se lhe espeta uma farpa, por exemplo, não é no touro que se pensa: é no toureiro, que assim estimula a agressividade da besta para poder continuar o jogo com a morte bestial que na arena realiza. Não há no touro picado nenhuma expressão de sofrimento. Aliás, não há nenhuma expressão...

Amar o touro como se fosse humano, ou o Pitbull que matou a criança, é uma forma de animismo primitivo, embora numa alienação típica das cidades modernas. Resulta de dissociar o touro da arena dos pacotes embrulhados com bifes do hipermercado. É projectar-lhe uma humanidade que os animais não têm. Uma alma. 

Animismo, portanto, do mais reles e primitivo que costumamos atribuir aos indígenas antigos...

Claro, gostar de fazer sofrer animais, como certas crianças fazem, é um versão invertida do mesmo animismo, e esse sim, condenável, por esconder o desejo de fazer o mesmo a humanos. O mesmo quanto à zoofilia, menos rara do que se pensa...

Com os cães a coisa é um pouco diferente. Há efectivamente uma empatia excepcional entre esses animais e os humanos. 

Primeiro, o tipo de sociabilidade é semelhante: os canídeos caçam em grupo e têm por isso a maior taxa de sucesso na caça de todos os carnívoros - e, como nos humanos, a sua superioridade reside quase inteiramente na força do grupo. Além disso têm hierarquias sociais também semelhantes às humanas - em certos casos (hienas) há uma fêmea dominante, noutros há um casal dominante (lobos), certos canídeos cuidam dos feridos e doentes da matilha.

Segundo, a relação dos cães com os humanos remonta à pré-história, e penso que advém precisamente dessa semelhante sociabilidade. Depois os humanos apuraram as raças mais afins, até termos estes animais cuja empatia connosco é sabida. Mas não deixam de ser animais. 

Que, aliás, por vezes os humanos apuram para serem armas suas. Como os doberman dos nazis. Ou os cães com explosivos às costas que os russos usavam contra os Panzer, fazendo-os passar fome e "ensinado-lhes" que a comida estava debaixo do tanque (aposto que esta utilização suscitaria gigantescos abaixo-assinados contra)... ou os cães de alfândega que são viciados de modo a procurarem droga nas bagagens...

Um cão como companhia doméstica? Em certos casos entendo, na velhice, por exemplo...

Mas desenvolver com os cães uma relação como se fossem humanos, filhos ou algo assim, particularmente quando ainda se é novo, não é só alienação animista. 

É querer ter escravos humanos totalmente subservientes e, não podendo, encontrar-lhes o sucedâneo legal...

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Acordo Ortográfico, ou a destruição da Lingua Portuguêsa ?

Há dias, a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, adiou a obrigatoriedade de implementação do "Acordo" Ortográfico para 2016. 

Fê-lo com base numa petição que reuniu 20.000 assinaturas. 

Em Portugal, uma igual petição reuniu mais de 130.000, e não teve qualquer eco.

130.000 assinaturas num país cuja população é incomparavelmente menor do que no Brasil. 

Devemos aproveitar para reflectir seriamente sobre o "A"O e os seus efeitos em Portugal. 

O exemplo vem-nos, aliás, do próprio Brasil. Nesse país, os argumentos aduzidos apontam para críticas de ordem científica ao "A"O. E junta-se a essas críticas o argumento da necessidade de uma "maior simplificação" da ortografia da língua portuguesa. Além de que por exemplo o linguista Evanildo Bechara assegura que o "A"O precisa de ser revisto. 

Revisto - e nem ainda entrou em vigor! 

Isto diz bem da consistência científica de um dos maiores atentados feitos à língua portuguesa. Naturalmente, este adiamento sublinha a bondade das críticas feitas ao "Acordo", mostrando que nem em Portugal nem no Brasil (nem nos outros países lusófonos, que mostraram grandes reticências, sendo que Angola ainda não o ratificou) ele conseguiu um consenso mínimo em termos científicos. 

A grande questão, agora, é saber se realmente há base científica para que algum dia ele venha a existir. Com este ponto suplementar: a partir do momento em que várias declarações, no Brasil, apontam para a necessidade de uma maior "simplificação" da língua portuguesa, o que se impõe perguntar em Portugal é: queremos nós, em Portugal, "simplificar" (seja o que for que isto queira dizer!) a língua? 

Ou privilegiamos (legitimamente também) a história da língua portuguesa na Europa, guardando por exemplo alguns traços etimológicos da sua origem e evolução ao longo dos séculos? 

Simplificando a pergunta: haverá base, em termos de uma política científica do Português, para um acordo que não parece agradar nem a gregos nem a troianos? A resposta talvez seja: "Assim-assim." 

Em Portugal, é sob esta fórmula que se costuma esconder a falta de coragem e a aceitação tristonha do império da realidade, quando mais vale não pensar. 

Em 2016, eis um cenário muito possível: 

Angola manterá a ortografia existente anterior ao "Acordo". 

Portugal seguirá, se não conseguir inverter o statu quo, o pobre "acordês". 

E o Brasil terá entretanto revisto e certamente "melhorado" o "Acordo", escrevendo numa terceira ortografia. 

Resumindo: cada qual escreverá de sua maneira, e ter-se-á esfrangalhado a ortografia comum que, até agora, era seguida por todos os países lusófonos, com excepção do Brasil. Ou seja: será um verdadeiro "acordo português", em que ninguém sabe acordar. 

Por Helena Buescu Professora catedrática, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no Público, 08/01/2013