Nós merecemos isto. Nós elegemos esta gente. Nós não somos muito
diferentes disto.
No meio do anedotário que converteria um homem mais
inteligente num homem trágico, convém não esquecer o que nos separa, exactamente, do Relvas. Pouco. O dito não é um espécime isolado,
um pobre diabo animado de força e disposição para fazer negócios e
trepar na vida, que entrou em associações e cambalachos, comprou um
curso superior e, de um modo geral, se autoinstituiu em conselheiro do
rei. Já vimos isto.
Nunca vimos isto nesta escala, porque na
25ª hora da tragédia nacional, quando Portugal se confronta com a
humilhação da venda dos bens preciosos (os famosos activos) aos
colonizados de antanho e seus amigos chineses, o que o país tem para
mostrar como elite é pouco. Nada distingue hoje a burguesia do
proletariado. Consomem as mesmas revistas do coração, lêem a mesma má
literatura (que passa por literatura), vêem a mesma televisão,
comovem-se com as mesmas distrações. Uns são ricos, outros pobres.
A elite portuguesa nunca foi estelar, e entre a expulsão dos judeus e a
perseguição aos jesuítas, dispersámos a inteligência e adoptámos uma
apatia interrompida por acasos históricos que geraram alguns
estrangeirados ou exilados cultos permanentemente amargos e desesperados
com a pátria (Eça, Sena) e alguns heróis isolados ou desconhecidos
(Pessoa, 0'Neill).
Em "Memorial do Convento", Saramago dá-nos
um retrato da estupidez dos reis mas exalta romanticamente o povo. Todos
os artistas comunistas o fizeram, num tempo em que o partido comunista
tinha uma elite intelectual e de resistência inspirada por um chefe que,
aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare. Cunhal
traduzindo o "Rei Lear" de um lado, Relvas posando nas fotografias ao
lado da bandeira do outro. Relvas nem personagem de Lobo Antunes, o
(descritor da tristeza pós-colonial, chega a ser. É um subproduto de
telenovela O tempo dos chefes cultos acabou, e se serve de consolação,
não acabou apenas em Portugal.
A cultura de massas ganhou. No
mundo pop, multimédia, inculto e narcisista, em que cada estúpido é o
busto de si mesmo, a burguesia e o lúmpen distinguem-se na capacidade de
fazer dinheiro. Acumular capital. O dinheiro, as discussões em volta do
dinheiro acentuadas pela falta de dinheiro, fizeram do proletariado (e
desse híbrido chamado classe média) uma massa informe de consumidores
que votam. E que consomem democracia, os direitos fundamentais, como
consomem televisão, pela imagem. Sócrates e o Armani, Passos Coelho e a
voz de festival da canção.
Nós, e quando digo nós digo o jornalismo na
sua decadência e euforia suicidaria, criámos estas criaturas. Os Relvas,
os Seguros, os Passos Coelhos, os amigos deles.
O jornalismo,
aterrorizado com a ideia de que a cultura é pesada e de que o mundo tem
de ser leve, nivelou a inteligência e a memória pelo mais baixo
denominador comum, na esteira das televisões generalistas. Nasceu o
avatar da cultura de massas que dá pelo nome de light culture em
oposição à destrinça entre high e low. O artista trabalha para o
'mercado', tal como o jornalista, sujeito ao rating das audiências e dos
comentários on line.
A brigada iletrada, como lhe chama Martin
Amis, venceu.
Estão admirados? John Carlin, o sul-africano autor do
livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood, "Invictus", conta
que Nelson Mandela e os homens do ANC, na prisão, discutiam
acaloradamente, apaixonadamente, Shakespeare. Foram "Júlio César" ou
"Macbeth", "Hamlet" ou "Ricardo III" que os acompanharam. Não é um
preciosismo. A literatura, o poder das palavras para descrever e incluir
o mundo num sistema coerente de pensamento, é, como a filosofia e a
história, tão importante como a física ou a álgebra. A grande mostra da
Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos é Shakespeare (no British Museum) e não
um dono de supermercados ou futebolista.
Os 'heróis'
portugueses descrevem-nos. E descrevem a nossa ignorância Passos Coelho é
fotografado à entrada do La Féria ou do casino. Um dono de
supermercados ou um esperto ministro reformado são os reservatórios do
pensamento nacional. Uma artista plástica é incensada não pela obra mas
pela capacidade de "agradar ao mercado", transformando-se, pela
manifesta ausência de candidatos, em artista oficial do regime. É assim.
Não teria de ser assim. Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que
consome cultura quase toda velha e sem sucessores. Não estamos sós. Por
esse mundo fora, a arte tornou-se cópia e reprodução (daí a
predominância dos grandes copiadores de coisas, os chineses), tornou-se
matéria tornou-se consumo. Como bem disse Vargas Iiosa, em vez de
discutirmos ideias discutimos comida. A gastronomia é uma nova
filosofia. Ferran Adriá é o sucessor de Cervantes e de Ortega Y Gasset."
Clara Ferreira Alves - Expresso - 21-07-2012