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Aquilo Que nenhum politico vos dirá, por José Manuel Fernandes, no jornal Pubblico
Ontem
defendi no Público que Portugal pode não ter alternativa a renegociar a
dívida e a sair do euro. Mas não será nada bonito de se ver:
Quando
pensamos que nada pode correr pior, é sempre possível que tudo piore
ainda mais. Por isso é bom começar a pensar nos cenários de que ninguém
nos fala, sobretudo não nos falam os políticos. Os cenários de falhanço
completo da estratégia seguida nas últimas décadas. Pois é a isso que
estamos a assistir.
Há 20 anos, quando Portugal assinou o Tratado de
Maastricht, ainda Cavaco Silva era primeiro-ministro, vivíamos duas
imensas ilusões. Nos anos anteriores a economia portuguesa tinha
crescido a um ritmo que não conhecia desde o final da década de 60,
início da década de 70. A adesão à União Europeia e o cavaquismo
triunfante pareciam estar a cumprir o sonho de gerações de portugueses,
isto é, a rápida aproximação ao nível de vida da Europa desenvolvida. A
economia passava por um rápido processo de transformação e
liberalização. Comprometermo-nos com um tratado que procurava fazer de
toda a União uma espécie de Alemanha gigante parecia não só razoável
como lógico.
Este sonho não era só português, era de toda a Europa
do Sul, e pareceu estar a materializar-se quando, no caminho para a
moeda única, a inflação começou a desaparecer, as taxas de juro baixaram
de forma dramática e pareceu haver dinheiro para todos os
investimentos, mesmos os mais disparatados, e para um consumo sem
limites. Embebedámos-nos, como se embebedaram os gregos, os espanhóis e
os italianos. Nos nossos países aconteceu com o euro o contrário do que
devia ter acontecido. Em vez de nos tornarmos mais disciplinados, como
os actores das economias do Norte da Europa, ficámos mais
irresponsáveis. Em vez de aproveitarmos os mecanismos da moeda única
para abrirmos mais as nossas economias, aprofundando o mercado único,
fechámos essas economias, diminuindo o seu grau de integração com o
resto da zona euro. Isso não correspondeu sequer a uma reacção
irracional: as empresas, face ao boom do mercado interno de cada país,
insuflado pelo crédito fácil, deixaram de procurar os mercados externos.
Para usar a linguagem dos economistas, o dinheiro disponível passou do
sector transaccionável para o sector não transaccionável.
Ou seja, o
euro fez-nos muito mal. Não só nestes últimos anos, mas desde que, como
se diz com algum exagero mas também com verdade, começámos a destruir a
nossa indústria e a ver tornarem-se nas grandes empresas nacionais os
fornecedores de serviços protegidos da concorrência (telecomunicações,
energia), os grupos de comércio a retalho e os conglomerados da
construção civil.
O resultado de tantos anos de escolhas erradas
foram duas dívidas gigantescas. A dívida pública está a um passo de
ultrapassar os 120% o PIB. E a dívida externa (que inclui as dívidas das
empresas, dos bancos e dos particulares ao exterior) disparou para
valores ainda mais estratosféricos, tendo uma evolução negativa muito
rápida, pois em 1995/96 Portugal praticamente não tinha dívida externa. O
crescimento da dívida pública é o resultado dos défices acumulados pelo
Estado; o crescimento da dívida externa é a consequência de há quase 15
anos Portugal ter sistematicamente consumido, ano após ano, mais 10% do
que aquilo que produz.
As intenções de quem negociou o euro e
subscreveu Maastricht podem ter sido as melhores do mundo, e não há
dúvidas de que as economias do Norte da Europa, mesmo as que não
aderiram à moeda única (casos da Suécia, Dinamarca ou Polónia), souberam
tirar o melhor partido das oportunidades criadas. Já entre nós o sonho
de ver o nosso portugalito transformado numa versão atlântica e
ensolarada da Alemanha foi apenas uma enorme ilusão. Fatal ilusão.
Hoje o nosso país está preso numa armadilha. Porque está no euro, não
tem política monetária, logo não pode desvalorizar a moeda para tornar
as importações mais caras e as exportações mais competitivas. Porque
está no euro, o Banco de Portugal não se pode pôr a imprimir moeda para
ajudar o Estado a pagar as suas dívidas e o seu défice. Porque está no
euro, está num colete de forças. E o esforço para sair desse colete de
forças está a falhar.
O processo que iniciámos há pouco mais de um
ano é uma tentativa desesperada de recolocar Portugal num, chamemos-lhe
assim, "caminho alemão", ou "caminho nórdico". Por um lado, diminuir o
défice público. Por outro, reverter os equilíbrios da economia para a
fazer exportar mais e importar menos, processo impossível de conseguir
sem uma compressão do consumo interno. À frente desse processo tem
estado o mais "alemão" de todos os ministros das Finanças da democracia
portuguesa, Vítor Gaspar, ele mesmo um homem das negociações de
Maastricht.
Parece estar a tornar-se óbvio que Portugal não quer, ou
não pode, ou não consegue, seguir este caminho. Não o digo por causa
das manifestações do 15 de Setembro. Digo-o por causa do que significou o
Conselho de Estado. E das exigências da Concertação Social. Digo-o
porque os portugueses, como é seu hábito secular, querem tudo e não
querem nada. Ainda ontem era muito significativa a capa do Jornal de
Negócios sobre o que os portugueses quereriam do próximo Orçamento do
Estado: "Lóbis, corporações, empresários e sindicatos estão juntos.
Pedem menos cortes, mais investimento, apoios às exportações, redução
selectiva da TSU, descida do IVA e aposta na reabilitação urbana." Ou
seja, querem como de costume que tudo fique na mesma.
Como se isto
não chegasse, os nossos números são demasiado pesados. O pagamento de
juros da dívida pública já leva mais dinheiro do que o que se gasta em
Educação ou em Saúde, e, enquanto existir défice público - mesmo que
seja apenas de 3% -, essa dívida vai continuar a subir. Por outro lado,
para voluntariamente chegarmos ao equilíbrio orçamental, teríamos de
cortar quase um quinto das despesas do Estado e da Segurança Social, se
tomarmos como referência o ano de 2010. Isso não é possível sem abdicar
de boa parte do nosso Estado social, o qual consome três quartos da
despesa pública primária.
Mas há mais. Mesmo aquilo que está a
correr melhor - o equilíbrio das nossas contas externas - é muito
insuficiente para permitir grandes optimismos. Um economista que se tem
dedicado ao tema, Ricardo Cabral, estima que para reequilibrar em 15
anos a nossa situação necessitaríamos de crescer 4% ao ano e de ter um
saldo positivo na balança comercial de 6% (o tal saldo que foi sempre
negativo desde a II Guerra Mundial). Ninguém acredita que seja possível.
Tenho falado nos últimos meses com muitos economistas, incluindo com
antigos ministros das Finanças, que conhecem os números e convergem
quase sempre num ponto: assim não vamos lá. Curiosamente quase todos
eles se inibem de tirar as consequências, porque isso implica tocar em
dois tabus. São esses tabus que temos de começar a discutir.
O
primeiro tabu é o da renegociação das dívidas. Não que essas dívidas não
existam, como dizem os viciados em despesa pública. Mas porque
genuinamente não conseguimos pagá-las e elas condicionam demasiado o
nosso futuro para podermos ter qualquer esperança.
O segundo tabu é o
do abandono do euro, acabando de vez com a ilusão de que conseguimos
ter a disciplina dos alemães. A nossa economia, para nossa desgraça, não
mostrou ser capaz de viver sem inflação e sem desvalorizações. Será o
fim do nosso sonho de convergência com "a Europa", mas marcará também o
regresso a uma vida com os pés na terra.
O país que sairia destas
duas medidas não seria bonito de se ver, mas seria ao menos um país de
novo entregue a si próprio, que teria reconquistado a liberdade que
pusemos nas mãos da troika. É altura de começar a discutir o preço que
teriam para todos nós estas alternativas. Estou cansado da conversa
sobre os "cortes" por parte de quem, na verdade, não quer "cortes"
nenhuns e tem como único sonho encontrar quem que nos pague as contas,
chamando a isso "solidariedade".
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