segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Da traição, á angustia da chegada.

Vivem-se vidas inteiras sem conhecer o desespero.

Mas esse sentimento pungente, amargo, rude, foi partilhado em 1975 por centenas de milhares de portugueses em Angola sobretudo; centenas de milhares em Moçambique, na Guiné (até em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e Timor).

Cidades inteiras de pessoas felizes, prósperas, esperançosas, com uma absurda confiança no futuro, viram-se de repente sem vida social, sem emprego, sem casa, com o dinheiro congelado nos bancos e um terrível sentimento de perigo em relação às suas vidas e às da sua família. O desespero tem espinhos, alguns aguçados, e os seus bicos empurram as pessoas para o abismo.

No início de Maio de 1975, em Luanda, um grupo de 2.500 residentes em Angola anunciou que não conseguindo obter passagens aéreas ou marítimas para Lisboa, tencionava fazer a viagem até Portugal por via rodoviária, atravessando oito mil quilómetros de países africanos no sentido sul-norte ao longo de 90 dias. A caravana motorizada esteve organizada para ser constituída por 200 camiões e 500 automóveis particulares, sendo os suprimentos destinados a 15 camiões-frigoríficos com capacidade para transportar 30 toneladas de alimentos cada um.

Alguns veículos foram transformados em oficinas móveis para fazer face à inclemência do trajecto e um dos organizadores, Guilherme dos Santos, fez contactos formais com a Cruz Vermelha Internacional e com a Comissão das Nações Unidas para os Refugiados para, na medida do possível, ajudarem essa travessia das selvas, savanas e desertos do continente africano.

Acabaram por não avançar para esse louco caminho para a morte.

Mais a sul, porém, houve traineiras a largar de Porto Alexandre, e de Luanda cheias de gente, em direcção a Portugal-Algarve e Madeira onde chegaram, com muita sorte, sem males de maior. Outros barcos de pesca artesanais cruzaram o Atlântico para despejarem no Brasil "os refugiados" que não vieram para Portugal. De entre estes barcos de pesca artesanais alguns acabariam por afundaram no Oceano. E quase todos os que puderam escaparam por terra em direcção à África do Sul e a outros países limítrofes, em alguns casos viajando com máquinas de obras públicas que iam aplainando os acidentes do caminho.

O drama, o luto, o caos, a confusão dominou no primeiro tempo da chegada a Lisboa a cabeça das pessoas. Mais do que a revolta, as pessoas tentavam perceber os acontecimentos, e como é que se poderiam instalar em Portugal. A fase da revolta veio depois.

Na quantidade tremenda de gente que desaguou em Portugal aconteceu de tudo. Uma pequena minoria tinha acautelado o seu património e preparado o seu regresso a Portugal. Outra minoria - precisamente aquela que mais tinha a perder com a "independência" de Angola uma vez que perdera os laços com a metrópole - e nunca acreditou no pior desfecho, não preparou coisa nenhuma, e veio sem nada, absolutamente nada, para além da roupa que trouxe no corpo e muita desta fornecida pela Cruz Vermelha, pelas fugas em plena noite das suas casas em pijamas e descalços, quando dormiam. Algumas centenas, conseguiu trazer alguma coisa, pouca, mas suficiente para o espectáculo dos caixotes que inundou o cais e o aeroporto de Lisboa.

Aos números soma-se a crónica dos ressentimentos sobre a situação, a confusão baralha-se; calam-se os dramas, a angústia, sofresse e chora-se em silêncio. E faz-se o luto pelos familiares ou amigos assassinados.

O ódio é mais espesso que o sangue, mas há momentos em que nem isso adianta...

É QUANDO PORTUGAL E TRAIÇÃO JÁ NÃO SE DISTINGUEM!


Rogéria Gillemans, Aqui:

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O "grande", Mário Soares. Ou, o grande manipulador ?

Clara Ferreira Alves, escreveu no Expresso

Tudo o que aqui relato é verdade. Se quiserem, podem processar-me.

Eis parte do enigma. Mário Soares, num dos momentos de lucidez que ainda vai tendo, veio chamar a atenção do Governo, na última semana, para a voz da rua.

A lucidez, uma das suas maiores qualidades durante uma longa carreira política. A lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom par de anos num exílio dourado, em hotéis de luxo de Paris.

A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma "brilhante" que se viu o processo de descolonização.

A lucidez que lhe permitiu conseguir que os Estados Unidos financiassem o PS durante os primeiros anos da Democracia.

A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta durante a sua experiência governativa.

A lucidez que lhe permitiu tratar da forma despudorada amigos como Jaime Serra, Salgado Zenha, Manuel Alegre e tantos outros.

A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os "dossiers".

A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser primeiro-ministro depois de tão fantástico desempenho no cargo.

A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para ser agredido na Marinha Grande e, dessa forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e vencer as eleições presidenciais.

A lucidez que lhe permitiu, após a vitória nessas eleições, fundar um grupo empresarial, a Emaudio, com "testas de ferro" no comando e um conjunto de negócios obscuros que envolveram grandes magnatas internacionais.

A lucidez que lhe permitiu utilizar a Emaudio para financiar a sua segunda campanha presidencial.

A lucidez que lhe permitiu nomear para Governador de Macau Carlos Melancia, um dos homens da Emaudio.

A lucidez que lhe permitiu passar incólume ao caso Emaudio e ao caso Aeroporto de Macau e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos para uma Fundação na sua fase pós-presidencial.

A lucidez que lhe permitiu ler o livro de Rui Mateus, "Contos Proibidos", que contava tudo sobre a Emaudio, e ter a sorte de esse mesmo livro, depois de esgotado, jamais voltar a ser publicado.

A lucidez que lhe permitiu passar incólume as "ligações perigosas" com Angola, ligações essas que quase lhe roubaram o filho no célebre acidente de avião na Jamba (avião esse transportando de diamantes, no dizer do então Ministro da Comunicação Social de Angola).

A lucidez que lhe permitiu, durante a sua passagem por Belém, visitar 57 países ("record" absoluto para a Espanha - 24 vezes - e França - 21), num total equivalente a 22 voltas ao mundo (mais de 992 mil quilómetros).

A lucidez que lhe permitiu visitar as Seychelles, esse território de grande importância estratégica para Portugal, aproveitando para dar uma voltinha de tartaruga.

A lucidez que lhe permitiu, no final destas viagens, levar para a Casa-Museu João Soares uma grande parte dos valiosos presentes oferecidos oficialmente ao Presidente da Republica Portuguesa.

A lucidez que lhe permitiu guardar esses presentes numa caixa-forte blindada daquela Casa, em vez de os guardar no Museu da Presidência da República.

A lucidez que lhe permite, ainda hoje, ter 24 horas por dia de vigilância paga pelo Estado nas suas casas de Nafarros, Vau e Campo Grande.

A lucidez que lhe permitiu, abandonada a Presidência da República, constituir a Fundação Mário Soares. Uma fundação de Direito privado que, vivendo à custa de subsídios do Estado, tem apenas como única função visível ser depósito de documentos valiosos de Mário Soares. Os mesmos que, se são valiosos, deviam estar na Torre do Tombo.

A lucidez que lhe permitiu construir o edifício-sede da Fundação violando o PDM de Lisboa, segundo um relatório do IGAT, que decretou a nulidade da licença de obras.

A lucidez que lhe permitiu conseguir que o processo das velhas construções que ali existiam e que se encontrava no Arquivo Municipal fosse requisitado pelo filho e que acabasse por desaparecer convenientemente num incêndio dos Paços do Concelho.

A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao longo dos últimos anos, donativos e subsídios superiores a um milhão de contos.

A lucidez que lhe permitiu receber, entre os vários subsídios, um de quinhentos mil contos, do Governo Guterres, para a criação de um auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifico cedido pela Câmara de Lisboa.

A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e 2005, uma subvenção anual da Câmara Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador e Presidente.

A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe arrendasse e lhe pagasse um gabinete, a que tinha direito como ex-presidente da República, na... Fundação Mário Soares.

A lucidez que lhe permite que, ainda hoje, a Fundação Mário Soares receba quase 4 mil euros mensais da Câmara Municipal de Leiria.

A lucidez que lhe permitiu fazer obras no Colégio Moderno, propriedade da família, sem licença municipal, numa altura em que o Presidente era... João Soares.

A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de pressões sobre o director do "Público", José Manuel Fernandes, a investigação jornalística que José António Cerejo começara a publicar sobre o tema.

A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a Presidente do Parlamento Europeu e chamar dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole Fontaine.

A lucidez que lhe permitiu considerar Jose Sócrates "o pior do guterrismo" e ignorar hoje em dia tal frase como se nada fosse.

A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um amigo, Manuel Alegre, para concorrer às eleições presidenciais mais uma vez.

A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um frete ao Partido Socialista.

A lucidez que lhe permitiu ler os artigos "O Polvo" de Joaquim Vieira na "Grande Reportagem", baseados no livro de Rui Mateus, e assistir, logo a seguir, ao despedimento do jornalista e ao fim da revista.

A lucidez que lhe permitiu passar incólume depois de apelar ao voto no filho, em pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas.

No final de uma vida de lucidez, o que resta a Mário Soares? Resta um punhado de momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai. Vai... e não volta mais.

Clara Ferreira Alves
Expresso

Tendo a implementação da Democracia em Portugal mentores como Mário Soares, não admira que a versão instalada no país esteja obsoleta. O sistema precisa, urgentemente, de uma profunda renovação, ou seja, de novos protagonistas.

Obrigado, Clara.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Carta da Marisa Moura à administração da Carris

Exmos. Senhores José Manuel Silva Rodrigues, Fernando Jorge Moreira da Silva, Maria Isabel Antunes, Joaquim José Zeferino e Maria Adelina Rocha,

Chamo-me Marisa Sofia Duarte Moura e sou a contribuinte nº 215860101 da República Portuguesa. Venho por este meio colocar-vos, a cada um de vós, algumas perguntas:

Sabia que o aumento do seu vencimento e dos seus colegas, num total extra de 32 mil euros, fixado pela comissão de vencimentos numa altura em que a empresa apresenta prejuízos de 42,3 milhões e um buraco de 776,6 milhões de euros, representa um crime previsto na lei sob a figura de gestão danosa?

Terá o senhor(a) a mínima noção de que há mais de 600 mil pessoas desempregadas em Portugal neste momento por causa de gente como o senhor(a) que, sem qualquer moral, se pavoneia num dos automóveis de luxo que neste momento custam 4.500 euros por mês a todos os contribuintes?

A dívida do país está acima dos 150 mil milhões de euros, o que significa que eu estou endividada em 15 mil euros. Paguei em impostos no ano passado 10 mil euros. Não chega nem para a minha parte da dívida colectiva. E com pessoas como o senhor(a) a esbanjar desta forma o meu dinheiro, os impostos dos contribuintes não vão chegar nunca para pagar o que realmente devem pagar: o bem-estar colectivo.

A sua cara está publicada no site da empresa. Todos os portugueses sabem, portanto, quem é. Hoje, quando parar num semáforo vermelho, conseguirá enfentar o olhar do condutor ao lado estando o senhor(a) ao volante de uma viatura paga com dinheiro que a sua empresa não tem e que é paga às custas da fome de milhares de pessoas, velhos, adultos, jovens e crianças?

Para o senhor auferir do seu vencimento, agora aumentado ilegalmente, e demais regalias, há 900 mil pessoas a trabalhar (inclusive em empresas estatais como a "sua") sem sequer terem direito a Baixa se ficarem doentes, porque trabalham a recibos verdes. Alguma vez pensou nisso? Acha genuinamente que o trabalho que desempenha tem de ser tamanhamente bem remunerado ao ponto de se sobrepôr às mais elementares necessidades de outros seres humanos?

Despeço-me sem grande consideração, mas com alguma pena da sua pessoa e com esperança que consiga reactivar alguns genes da espécie humana que terá com certeza perdido algures no decorrer da sua vida.

Marisa Moura

Nota do Editor: Esta carta, foi motivada pela noticia do Publico de 01.04.2011:
Carris: administração recebeu viaturas topo de gama em ano de buraco financeiro de 776,6 milhões

sábado, 19 de novembro de 2011

Recordação do Dundo N.º 4 - O tesouro que deixei na minha terra

Uma das recordações que guardo, bem nítida, das minhas brincadeiras com o José Manuel Sotta, que vivia na casa oposta à minha, do lado das traseiras, foi um episódio singelo dos meus divertimentos de criança, passado numa mata de pequenas árvores, arbustos e canaviais, por trás da casa dele, do outro lado da rua dos cavalos. Fomos para lá brincar, inicialmente para fazer vários pequenos montes com as folhas secas que cobriam o chão, numa clareira da mata, atear-lhes fogo e assistir ao espectáculo grandioso das chamas a crescer!

Quando lá chegamos, ainda fizemos um ou dois montes, bem granditos, mas, depois, ficamos receosos das consequências de pegar fogo àquilo. Imaginámos as labaredas, altas, a consumir aquele combustível e a alastrar o fogo ao resto da vegetação. Imaginamos o alarme geral que a situação provocaria e os nossos pais, especialmente o meu, a correr para nós, no meio das chamas e do fumo, de cinto na mão, prontos para nos "aquecer" as costas e outras partes do corpo. Imaginamos ainda o supremo sofrimento que seria ficarmos, dias e dias de castigo, fechados no quarto, sem sair para brincar, nem comer doces à sobremesa. Para além de sermos, ainda, obrigados a gramar a sopa, a que, nos dias "normais" e com frequência, conseguíamos escapar.

Desistimos. Olhamos para o chão limpo de folhas, com a terra cheirosa à vista, e, aí, tive a ideia de propor ao meu companheiro que abríssemos um buraco, bem fundo, e que, no maior secretismo, lá enterrássemos um "tesouro".

Que tesouro, perguntou-me ele. Não foi logo que lhe dei a resposta. Dei tratos à imaginação, até que me surgiu uma ideia brilhante. Corri até casa, que distava dali uns bons cem a duzentos metros, e trouxe comigo, para além de papel e lápis, uma pequena carteira de bolso, vazia, em cabedal ordinário de cor acastanhada, com vários compartimentos para moedas e notas. Alguém, há bastante tempo, ma havia oferecido, provavelmente os meus pais, numa das férias no puto.

Pouco depois, cheguei junto do Sotta, esbaforido e a suar, e propus-lhe, ofegante e numa grande excitação, que o "tesouro" fosse aquela carteira, depois de lhe pormos dentro um papel, muito bem dobrado, onde escreveríamos, com letra desenhada a preceito, uma mensagem. Destinada a ser lida por quem, um dia, encontrasse o tesouro. Já não me recordo o que escrevemos, para além dos nossos nomes e da data daquele dia venturoso, em que, no último instante, trocamos uma má acção, que não cometemos, pela oferta de um "tesouro" aos vindouros.

A carteira e a mensagem que guardava, lá ficaram, bem fundas no buraco que as nossas minúsculas mãos, com a ajuda de alguns paus, conseguiram abrir. Sei que guardamos, religiosamente, completo segredo do nosso "tesouro". Recordo-me ainda que, dias depois, regressamos à clareira para confirmar se ele estaria intacto, mas não conseguimos encontrá-lo. Havíamos cometido a imprudência de não assinalar, num mapa e com algumas marcas no local, a sua posição.

Ainda bem, digo eu agora! Passados todos estes anos, não sei se alguém, durante a construção de alguma daquelas pequenas casas, ou cubatas, que se vêm nas imagens do Google Earth, encontrou o nosso tesouro e leu a mensagem. Sei que foi a única coisa de material, a que associei a imaterialidade de um sentimento que me ligou ao local, que deixei enterrada no chão da minha terra. Terra, que, passados mais de cinquenta anos, nunca mais visitei!

Oxalá que ninguém tenha encontrado o "tesouro". Pode ser que seja eu, um dia destes, a encontrá-lo, numa das viagens imaginárias que, com regularidade, faço à minha terra e à minha casa. Ficarei a saber o que, em cuidadosa letra de forma, escrevi naquele pequeno papel!

Toni Dinis

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Recordação do Dundo N.º 3 - Chicuco e a procriação

Soube, há já alguns anos, que, enraizada na crendice ancestral dos Kiokos, residia a certeza de que o sucesso e a qualidade da sua descendência dependiam da mulher, durante a gravidez, copular com o pai da sua criança, e apenas com este, regularmente e com muita frequência. Exigência que aumentava de rigor, nos dias anteriores ao parto.

Só nessa altura, fui capaz de relacionar com esta crença, um episódio da minha infância no Dundo, do qual, ainda hoje, guardo viva recordação.

Num recanto do jardim da minha casa, havia uma frondosa papaieira que, quase encostada à casa, fornecia, durante todo o dia, sombra grande e acolhedora, à qual recorria para as minhas brincadeiras de menino. Próximo da árvore, existia uma sebe, alta mas algo rarefeita, que separava o jardim da horta que servia a casa. A horta era um recinto rectangular, comprido, encaixado entre a nossa casa e a do vizinho do lado.

O meu pai e o nosso criado kioko, Chicuco, de seu nome, cuidavam da horta, sempre com muito desvelo e competência. Os tomateiros, alfaces, couves e outros legumes, cresciam viçosos, ordenados em carreiros muito bem cuidados e judiciosamente regados. O acesso à horta fazia-se, apenas, por uma porta situada num muro que limitava o lado pequeno do recinto, oposto ao da papaieira onde brincava.

Pela tarde de um certo dia quente e luminoso, como sempre eram os dias no Dundo da minha meninice, estava eu à sombra da papaieira, brincando alegre e descuidadamente com outro companheiro de tropelias, quando se me deparou uma cena bizarra. Aproximando-me da sebe, para pegar um dos brinquedos que lá fora parar, vi, por uma nesga entre alguns ramos, no fundo da horta, uma mulher negra, grande e possante, com enorme barriga de grávida, de pé, pernas abertas bem assentes no chão, braços ao alto e vestido para cima, firmemente encostada à parede da casa ao lado.

Vi, também, o Chicuco, de calças na mão e o rabo preto brilhando ao sol, aproximar-se da mulher e fundir-se com ela. Vi aquele kioko, vítima frequente das minhas maldades e partidas inocentes, a trabalhar laboriosamente em prol da descendência, em íntima comunhão com a mulher, os dois num só! Pareciam um farol de luz intermitente, com o reflexo do sol no rabo luzidio do Chicuco, a acender e apagar, em razão dos movimentos de avanço e recuo da função. Era ele a arfar, e ela a gemer! Ele a suar, e ela a gemer! Ele a “bombar”, e ela a gemer! Ele, receoso e apressado, e ela, indolente e a gemer!

Antes que o final surgisse, decidi surpreender o casal e aplicar uma partida ao desgraçado do Chicuco. Deixei o meu companheiro de brincadeira, surpreendido por aquele repente, e desatei a correr, desenfreadamente, dando a volta pelo outro lado da casa, até ao pequeno portão de acesso à horta. Era um trajecto ainda longo, por entre vegetação densa, que me consumiu três ou quatro minutos do meu precioso tempo.

Quando cheguei, já nada vi! As “vítimas” da partida já nem sequer lá estavam! Tamanha frustração para tão penoso esforço! Sorte para a descendência do kioko! O seu futuro não ficou comprometido pelo “coito interruptus” que, seguramente, o meu rompante provocaria! Ainda hoje, o bom do Chicuco, se for vivo, não imagina, sequer, o que esteve para lhe acontecer naquele dia de sorte!

Dois dias depois tivemos notícia que aquela mulher do Chicuco havia dado à luz um rapaz perfeito e saudável. Rechonchudo e alegre. Graças ao empenho e rapidez de acção do pai. Graças, também, à razoável distância e dificuldades do percurso que separava a horta, do meu lugar de brincadeiras.

Porto, 26 de Setembro de 2006

Autor: Toni Dinis.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Um país cheio de gente insuportável

"O senhor Presidente da República parte quarta-feira para os Estados Unidos. Boa viagem. Mas antes de deixar a terrinha fez questão de compartilhar com os portugueses o seu estado de alma sobre os desempregos e os filhos dos que não têm trabalho hoje, amanhã e daqui a uns anos.

Para Cavaco Silva, vão ser tempos insuportáveis. É verdade. Tem toda a razão. Mas essa gente vive a sua tragédia em silêncio, tenta sobreviver por todos os meios possíveis e imaginários. Não tem a protecção de ninguém.

Do poder político, que corta nos subsídios e na sua duração porque não há dinheiro; dos sindicatos, que apenas se preocupam com os afortunados que ainda têm trabalho; dos partidos, que andam preocupados com os direitos adquiridos e com as violações constitucionais dos cortes de ordenados e subsídios de férias e Natal de quem recebe o salário do Estado a tempo e horas; dos empresários incompetentes, que viveram e querem viver encostados ao Estado e que não suportam a mínima concorrência interna ou externa; dos empresários competentes que estão sem crédito na banca, atolados de impostos e burocracia e estão essencialmente preocupados em manter os seus negócios e ter dinheiro ao fim do mês para pagar os salários aos seus trabalhadores.

São, de facto, tempos insuportáveis para quem tem cabeça e dois braços para trabalhar e ninguém lhe dá emprego. Mas mais insuportável é olhar para o país e ver tanta gente insuportável a protestar por tudo e por nada, numa vã e miserável tentativa de manter tudo como dantes, alheia a tudo e a todos, mesmo aos que passam por tempos insuportáveis.

Insuportáveis são as greves dos transportes públicos.

Insuportáveis são os indignados com os cortes nas linhas do Metro ou da Carris.

Insuportáveis são os que marcam paralisações supostamente gerais para manter regalias e direitos que os que vivem tempos insuportáveis há muito perderam.

Insuportáveis são os reitores das universidades públicas que não querem viver com menos dinheiro do Estado.

Insuportáveis são os ecologistas que param obras de barragens por causa de umas árvores e ameaçam pôr no desemprego insuportável centenas de pessoas.

Insuportáveis são os médicos que se gabam de boicotes a medicamentos mais baratos que nem os que vivem tempos insuportáveis podem comprar.

Insuportáveis são as leis para filhos e enteados, que permitem o desemprego para uns e a segurança para outros.

Insuportáveis são os autarcas do regime que usam o seu peso político para não cortarem a sério no endividamento das câmaras.

Insuportáveis são os que fingem não saber a que estado chegou este país miserável em que uns tantos miseráveis se governaram à grande e à francesa durante muitos e bons anos democráticos.

É verdade, senhor Presidente da República. Há muita gente insuportável no país a que o senhor preside.

Talvez desse algum consolo à alma dos que vivem tempos insuportáveis ouvir os carrascos de Portugal pedir desculpa por tudo o que andaram a fazer.

Talvez a vida fosse menos insuportável, mesmo para os que vivem tempos insuportáveis. E para os que vão passar a viver tempos insuportáveis já a seguir."

por António Ribeiro Ferreira, jornalista, director do I

Portugal tem medo!

Sabem o que é o fim da democracia? É as pessoas terem perdido a esperança de que Portugal pode mudar a partir do interior dos partidos. É as pessoas não acreditarem que os partidos possam mudar a partir de dentro de si mesmos.

Sabem o que é o fim da democracia? É as pessoas referendarem em eleições por uma cruzinha num cartão pessoas que não escolheram, como quem num restaurante come o que a lista lhe oferece e tem sido sempre o «prato do dia» em todas as refeições, votarem nos nomes, cada vez piores, que lhes são apresentados pelos que dos partidos se apoderaram.

Sabem o que é o fim da democracia? É o acto eleitoral ser um negócio pelo qual vendo o meu voto em troca de não querer saber mais da causa pública, salvo para me lamuriar e ficar inerte, com excepção, para alguns, dos dias de greve e de manif.

Sabem o que é o fim da democracia? É ver-mo-los chegar à política com uma mão atrás e outra à frente, vagas de desconhecidos, treparem esses vultos através das velhacarias em que os aparelhos dos partidos do governo se tornaram, e uns tempos depois, publicitados, travestidos pelo "marketing", aí estão cheios como odres ou em santuários de bom viver.

Sabem o que é o fim da democracia? É ninguém ter votado que se aceitassem a aniquilação da nossa agricultura e, corruptos, aceitámos, submissos, da Europa do capital o seu dinheiro para a destruir, mais a frota pesqueira, mais a capacidade de produzir até o que comemos e hoje vivermos do calote e do fiado, iludidos uns que era a modernidade que assim chegava, a da tecnocracia post-moderna a este cantinho nosso de labregos, e mais do que certos outros de que o dinheiro para a formação e para a reconversão tecnológica daria para uns anos de desbunda privada e ostentação pública.

Sabem o que é o fim da democracia? É uma pessoa escrever isto e haver quem receie que lhe chamem fascista e se ter criado um clima oculto de intimidação pelo qual se aluga o silêncio e se compra a complacência e ser mais barato fazer de conta e sobretudo mais rendoso.

Sabem o que é o fim da democracia? É estarmos em República a ser governados pela «troika» estrangeira, como na Monarquia pelos Filipes espanhóis e já não comemorarmos o 25 de Abril e ainda não ter chegado quem queira um 1640.

Sabem o que é o fim da democracia? É ter-se enterrado com os Fernando Nobre a ilusão de que nas AMI's deste mundo ainda haveria um resto de gente que se podia organizar e tirar este país do estado comatoso em que se encontrava, até se ter descoberto que, afinal, era mais um, a mesma ambição pessoal, a mesma incapacidade de agir, a mesma derrocada moral, o mesmo desânimo.

Sabem o que é o fim da democracia? É que os que podiam pegar nas armas do combate contra os que a puseram na viela escusa da má fama, em nome da democracia suicidarem-se com essas armas, por vergonha, por desespero, por já não aguentarmos mais.

Somos um povo de suicidas escreveu Unamuno e conheceu-nos como a Manuel Laranjeira, outro que acabou consigo, como se matou Antero de Quental com um tiro e Alexandre Herculano ao exilar-se. Somos de facto: lentamente rende-mo-nos à morte lenta, ao doce veneno de nos vermos à noite a morrer, em directo e na TV.

Sabem o que é o fim da democracia? É a democracia ter-se, afinal, tornado, através da farsa do voto, uma forma de reorganização mundial do capital à conta de quem trabalha. Entre o euro e o dólar, nos subterrâneos das praças financeiras, eis aí o combate nos esgotos pelo verdadeiro poder.

Ao longe, a milenária China espera o seu momento para nos vender como nas lojas de trezentos. Mais perto, os Árabes que, em nome da Cristandade chacinámos pelas Cruzadas, anseiam o momento da vingança.

Hoje, ante a liturgia da falência e seus coveiros, no cortejo funerário da miséria, reina um silêncio profundo, o silêncio dos cemitérios. Portugal tem medo.

A Revolta das Palavras.
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