sábado, 19 de novembro de 2011

Recordação do Dundo N.º 4 - O tesouro que deixei na minha terra

Uma das recordações que guardo, bem nítida, das minhas brincadeiras com o José Manuel Sotta, que vivia na casa oposta à minha, do lado das traseiras, foi um episódio singelo dos meus divertimentos de criança, passado numa mata de pequenas árvores, arbustos e canaviais, por trás da casa dele, do outro lado da rua dos cavalos. Fomos para lá brincar, inicialmente para fazer vários pequenos montes com as folhas secas que cobriam o chão, numa clareira da mata, atear-lhes fogo e assistir ao espectáculo grandioso das chamas a crescer!

Quando lá chegamos, ainda fizemos um ou dois montes, bem granditos, mas, depois, ficamos receosos das consequências de pegar fogo àquilo. Imaginámos as labaredas, altas, a consumir aquele combustível e a alastrar o fogo ao resto da vegetação. Imaginamos o alarme geral que a situação provocaria e os nossos pais, especialmente o meu, a correr para nós, no meio das chamas e do fumo, de cinto na mão, prontos para nos "aquecer" as costas e outras partes do corpo. Imaginamos ainda o supremo sofrimento que seria ficarmos, dias e dias de castigo, fechados no quarto, sem sair para brincar, nem comer doces à sobremesa. Para além de sermos, ainda, obrigados a gramar a sopa, a que, nos dias "normais" e com frequência, conseguíamos escapar.

Desistimos. Olhamos para o chão limpo de folhas, com a terra cheirosa à vista, e, aí, tive a ideia de propor ao meu companheiro que abríssemos um buraco, bem fundo, e que, no maior secretismo, lá enterrássemos um "tesouro".

Que tesouro, perguntou-me ele. Não foi logo que lhe dei a resposta. Dei tratos à imaginação, até que me surgiu uma ideia brilhante. Corri até casa, que distava dali uns bons cem a duzentos metros, e trouxe comigo, para além de papel e lápis, uma pequena carteira de bolso, vazia, em cabedal ordinário de cor acastanhada, com vários compartimentos para moedas e notas. Alguém, há bastante tempo, ma havia oferecido, provavelmente os meus pais, numa das férias no puto.

Pouco depois, cheguei junto do Sotta, esbaforido e a suar, e propus-lhe, ofegante e numa grande excitação, que o "tesouro" fosse aquela carteira, depois de lhe pormos dentro um papel, muito bem dobrado, onde escreveríamos, com letra desenhada a preceito, uma mensagem. Destinada a ser lida por quem, um dia, encontrasse o tesouro. Já não me recordo o que escrevemos, para além dos nossos nomes e da data daquele dia venturoso, em que, no último instante, trocamos uma má acção, que não cometemos, pela oferta de um "tesouro" aos vindouros.

A carteira e a mensagem que guardava, lá ficaram, bem fundas no buraco que as nossas minúsculas mãos, com a ajuda de alguns paus, conseguiram abrir. Sei que guardamos, religiosamente, completo segredo do nosso "tesouro". Recordo-me ainda que, dias depois, regressamos à clareira para confirmar se ele estaria intacto, mas não conseguimos encontrá-lo. Havíamos cometido a imprudência de não assinalar, num mapa e com algumas marcas no local, a sua posição.

Ainda bem, digo eu agora! Passados todos estes anos, não sei se alguém, durante a construção de alguma daquelas pequenas casas, ou cubatas, que se vêm nas imagens do Google Earth, encontrou o nosso tesouro e leu a mensagem. Sei que foi a única coisa de material, a que associei a imaterialidade de um sentimento que me ligou ao local, que deixei enterrada no chão da minha terra. Terra, que, passados mais de cinquenta anos, nunca mais visitei!

Oxalá que ninguém tenha encontrado o "tesouro". Pode ser que seja eu, um dia destes, a encontrá-lo, numa das viagens imaginárias que, com regularidade, faço à minha terra e à minha casa. Ficarei a saber o que, em cuidadosa letra de forma, escrevi naquele pequeno papel!

Toni Dinis

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