domingo, 5 de dezembro de 2010

O escudo ainda faz suspirar muitos corações

O escudo ainda faz suspirar muitos corações. Mas se os portugueses soubessem o que implicaria o regresso ao passado, seriam menos nostálgicos. Integrar a União Europeia e a moeda única tem um custo de manutenção, porventura alto. Mas sair teria um custo muito maior.

Portugal bateu com a cabeça na parede. E, como um ébrio, tenta reequilibrar-se para chegar a casa sem cair. O problema é que continua aturdido, e sem perceber ainda onde está, sente dificuldade em escolher e trilhar o caminho certo. Daí a necessidade iminente de ajuda.

A imagem de um país ébrio poderá parecer desajustada, mas só um país inebriado com a ausência de sanções para os sucessivos incumprimentos de gestão poderia ter chegado a 2010 sem saber em que condições chegará a 2020.

A produtividade está muito aquém, o endividamento muito além, o desemprego atingiu o valor mais alto de sempre - 6094 mil pessoas, 11% da população. E o orçamento, só este ano, foi rectificado três vezes com pactos de estabilidade e crescimento, dos quais resultaram rudes sentenças para um futuro que começa já daqui a um mês: aumento de impostos, redução de salários, congelamento de pensões, estagnação de investimento público. Tudo em nome de um défice de 4,6%.

Apesar disto, os mercados, indiferentes aos esforços, mantiveram durante largos dias a taxa de juro sobre a dívida soberana nos 7%. E só quinta-feira, depois de uma declaração de Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (BCE), acompanhada da aquisição de títulos de dívida pública portuguesa e irlandesa, os juros começaram a descer. Anteontem, chegaram aos 5,84% - o valor mais baixo dos últimos três meses. Aliviou a pressão, mas não afastou a possibilidade, cada vez mais real, de Portugal ter mesmo de estender a mão ao FMI.

O problema é que poderá já não bastar. Porque é cada vez menos possível prever se a injecção de liquidez nas economias insolventes chegará para evitar uma falência em dominó: Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha, França e agora também Itália têm pouquíssima margem de erro.

Perante isto, em Portugal, há cada vez mais quem suspire pela saída do euro, que o tempo do escudo é que era bom. Era mesmo? Integrar a União Europeia (UE) e a moeda única tem um custo de manutenção, porventura alto. Mas sair teria um custo muito maior. Saiba porquê.

Imagine que a sua poupança passaria a valer apenas metade. Poupou 100 mil euros ao longo da vida, passaria a ter apenas 50 mil. E que, por oposição, as suas dívidas à banca seriam sujeitas a um juro mais alto, logo, passaria a dever muito mais. Esta seria apenas uma das muitas consequências da saída do euro: a moeda seria objecto de desvalorização, um euro deixaria de valer, como até 2002, 200 escudos.

Assim sendo, convergem os economistas ouvidos pelo JN, "se já temos problemas, passaríamos a ter muitos mais." Tanto mais que, quando aderimos à então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, havia estudos e provas sobre uma vida que seria melhor - as economias da França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo e Itália primeiro; da Dinamarca, Inglaterra, Irlanda e Grécia depois, eram a demonstração cabal disso. Regressar ao escudo seria um salto no escuro. Com uma única certeza: a de um isolamento que levaria inevitável e rapidamente o país ao empobrecimento.

Se sair do euro não é solução e estar no euro conduziu-nos a uma crise que poderá redundar na tragédia de muitos portugueses, impõe-se perguntar o que correu mal. Recorde-se que para aderir ao euro não bastava querer, era necessário respeitar os critérios de convergência exigidos em termos de finanças públicas: estabilidade de preços, posição orçamental, estabilidade cambial e taxas de juro a longo prazo. A gestão pública portuguesa descarrilou após a adesão ou Portugal nunca esteve realmente em condições de aderir? E aqui, as opiniões divergem.

José Reis, director da Faculdade de Economia na Universidade de Coimbra e ex-secretário de Estado de Guterres na pasta do Ensino Superior, responsabiliza "a crença cega no liberalismo económico" enquanto símbolo de prosperidade e acumulação de riqueza. Não se trata, diz, de olhar para os países individualmente, mas para a Europa como um todo. "A UE era uma realidade generosa, procurava integrar os países, até porque tinha havido uma ruptura entre as economias centrais e periféricas. A CEE fez disso a sua grande aposta: superar assimetrias". No entanto, "confiar na ideia de que uma União Monetária resolveria todos os problemas, incluindo essas assimetrias, foi um erro muito claro", critica. "Não só subsiste o desequilíbrio externo como a inexistência de mecanismos para controlar a macro-economia liberal gerou o actual processo infernal."

João Loureiro, investigador do centro de estudos macro-económicos da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, avalia o cenário justamente a partir do prisma oposto: o dos países individualmente - e é particularmente duro com Portugal. "O grande problema é que aderimos ao Euro e nunca tivemos o comportamento recomendado. Há países de dimensão tão pequena como a nossa que aderiram e estão bem", afirma. Para o professor, o problema nacional é mesmo anterior ao euro. "Já antes da UE havia países com moeda própria - Holanda, Bélgica, Áustria -, que tinham uma taxa de inflação e de juro baixas enquanto as nossas oscilavam entre os 20 e os 30%. É um problema de políticas, de indisciplina, de decisões que foram sempre erradas - antes e depois".

Também professor de Economia na Universidade do Porto, Óscar Afonso, pede emprestada uma imagem utilizada pelo economista Vítor Bento para subscrever esta ideia. "Os países construíram economias como as casas dos três porquinhos: houve quem as fizesse de tijolo e quem as fizesse de madeira. Nós fizemos de palha. À menor ventania foi tudo ao ar. A culpa é nossa."

Nossa e da "falta de rigor na fiscalização", acrescenta João Loureiro. "A regra escrita que obriga os países à disciplina orçamental nunca foi observada por países como Portugal e a Grécia, que quase sempre usaram truques contabilísticos para controlar o défice. Se tivesse havido fiscalização sobre a aplicação da regra, os países nunca teriam acumulado dívidas, porque ao menor incumprimento seriam sancionados." Daí, a crítica às recentes afirmações de Angela Merkel. "A chanceler alemã tem razão quando diz que os mercados devem diferenciar os países - entre 1999 e 2007 a taxa portuguesa era muito parecida à alemã -, que se esses não cumprirem a regra, ninguém poderá continuar a socorrê-los, logo, serão os credores a arcar com as responsabilidades. Simplesmente, disse-o no momento errado, numa altura em que os mercados já estavam instáveis. Foi como atirar petróleo para um lugar onde já havia lume. E, com isso, agravou os juros."

José Reis entende porquê. "Até agora ninguém acreditava na intencionalidade da concepção errada do Euro. Mas hoje é difícil vê-lo dessa forma. A Alemanha está morta por se libertar das economias periféricas. É a lógica da desconstrução da Europa." E sublinha o que diz ser uma inevitabilidade. "A partir do momento em que se entregou aos mercados financeiros especulativos o que era da soberania, não ficámos perante um problema de culpa deste ou daquele país, mas diante de um problema estrutural."

Esta teoria não encontra seguidores nos outros dois economistas - ambos defendem que "não fizemos o trabalho de casa" -, mas foquemo-nos agora na solução do problema e nas consequências da solução. Vamos empobrecer ou mudar de paradigma?

Sair do euro, insiste João Loureiro, está de fora de questão. Se isso acontecesse, enuncia para que não restem dúvidas, "uma série de agentes económicos entrariam em colapso, deixaríamos de ter acesso a muitas importações, perderíamos competitividade, a inflação disparava, os empréstimos seriam incomportáveis, a Bolsa sofreria um tombo. Em suma, o resto do Mundo deixaria de confiar em nós e nós deixaríamos de contar para o resto do Mundo." Só há, defende, dois caminhos para a saída: aumentar os impostos ou reduzir a despesa. O professor joga tudo nesta última hipótese. E garante que numa legislatura é possível fazer muita coisa. Mas adverte: "Não há soluções sem dor. Para reduzir o défice, alguém terá de ser penalizado: ou quem vai pagar mais ou quem vai beneficiar menos". E para uma resolução de médio, longo prazo, volta a apostar tudo na última possibilidade.

Exemplos do que, em sua opinião, ainda é possível fazer: "Flexibilizar o mercado de trabalho, diminuindo o custo dos despedimentos; colocar a justiça a funcionar; redimensionar a rede de ensino ao nível secundário e do superior; realizar uma reforma fiscal, incentivando umas actividades e desincentivando as que não acrescentam nada à riqueza do país; reformar a Segurança Social, efectuando cortes retroactivos nas pensões; tornar o Serviço Nacional de Saúde mais caro para o utente; criar enquadramento legal que impeça no futuro todo o tipo de erros orçamentais cometidos no passado...". É duro. "Pois é", reconhece. "Mas é tempo de mudar de vida. E se não semearmos agora, então, nunca mais iremos colher no futuro."

Oscar Afonso corrobora e acrescenta "a necessidade urgente de mudar os decisores políticos nacionais". Nesta altura, diz, "atingiram um tal nível de descrédito, que é preferível sermos temporariamente controlados por uma entidade exterior." José Reis também avança uma solução, muito mais suave e, admite, "difícil de concretizar". Passaria por "uma iniciativa política conjunta de chefes de Estado que, assumindo que não é possível manter esta especulação, criassem um novo mecanismo para financiar a Europa. Isto implicaria também a intervenção do BCE ao nível da emissão de moeda." Se não acontecer, então, antecipa, "será necessário assumir compromissos para um processo que nunca pode ser abrupto: a decomposição dos países da periferia da Europa."

O euro, como assegurou Trichet, até pode "ser uma moeda tão credível para os próximos 10 anos como foi nos últimos 12 anos", mas, no que concerne a Portugal, há consenso entre os economistas: o próximo ano será de recessão e o seguinte de crescimento zero. Significa empobrecer? "Significa a perda da ilusão de que poderíamos viver eternamente acima das nossas possibilidades", conclui Óscar Afonso.

Helena Teixeira da Silva, no JN

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