sábado, 28 de janeiro de 2012

Um Dia Isto Tinha Que Acontecer, por Mia Couto

Existe mais do que uma! Certamente! 

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. 

Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. 

A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.

Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.

Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.

Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.

Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.

Foi então que os pais ficaram à rasca.

Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.

São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.

São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!

A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.

Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.

Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.

Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.

Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.

Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.

Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.

Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.

Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.

Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).

Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.

E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!

Novos e velhos, todos estamos à rasca.

Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.

Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.

A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.

Haverá mais triste prova do nosso falhanço?

2 comentários:

Zé Carlos Sinistro disse...

Boa noite,
Pois era só mesmo para dizer que não concordo. Nesta geração que se diz que não estão preparados para a crise, há muitos que foram criados como se galgos de corrida se tratassem. É a geração mais culta e letrada, pois boa parte dos seus pais cuidaram da escolha de escolas e da motivação para o estudo castrando inclusivamente a adolescência que um dia houve em qualquer um de nós. Poderão não ter sidos ensinados todos os valores, mas os que tornam os homens mais fortes entre outros não faltou. Alias basta verificar a cobiça que os nossos jovens despertam no mundo do trabalho no estrangeiro, sejam cientistas ou simples operários. Claro que algo falhou. Mas há que casar a culpa com o par certo. A culpa é do sistema e da mentalidade das classes dirigentes a nível do estado e das empresas. Medíocres, incompetentes, uns verdadeiros parasitas até! Se a classe que agora se alguns iluminados sugerem que imigre fosse colocada onde deveria outro galo cantaria. Agora o que raramente casa é a benção com o padrinho.
Tenho dito boas noites outra vez

Zé Carlos

Sheilla Ronda disse...

Preciso discordar.

Muitos pais sacrificaram sim economias que tinham e que não tinham para proporcionar aos seus filhos a melhor educação académica possível.
De onde eu venho, a questão não se coloca no lado dos filhos preguiçosos, mimados, exigentes, etc., mas de um país, uma sociedade em que faltam oportunidades de emprego dignas, com salários dignos. Um país em que um jovem corre o risco de ter tido mais de mesada do que de salário.
Um país em que por muito que um jovem corra atrás, por si não consegue ter uma vida digna de alguém que trabalha. No limite o jovem continua, até aos 40, 50 anos a beneficiar de ajuda dos pais. Não por gosto ou preguiça, mas por falta de opção. Seja ela o tal combustível (que se deu quando se teve o primeiro carro e que se continua a dar depois de casado), seja o rancho, seja a consulta no médico ou advogado, ou até aquele emprego com um salário chorudo que o pai teve que criar para o seu filho na sua própria empresa (ao filho do vizinho não pagaria o mesmo salário).

Que apareça o jovem desta geração (30 anos) e que me diga que simplesmente com o esforço do seu trabalho comprou uma casa. Parabéns para ele se existir.

Enfim, é um assunto com pano para manga, mas simplesmente para dizer que há muitos jovens com garra e vontade de ir, ver e vencer, mas o sistema está corrompido por um lado, e por outro os salários não permitem muito, e bem, esqueçamos que a banca existe. Até os empréstimos são proibitivos. Digo até porque se trata de um dinheiro que se pretende emprestado e não dado.


Super dia.